ConJur 20 Anos

01/08/2017 Ano XX

Quando o jornalismo finalmente saiu em defesa do direito de defesa

O mundo mudou, o Judiciário mudou, a ConJur mudou. Nos 20 anos que a separam de seu primeiro dia na internet, contudo, não tem nada mais igual a si mesma do que a revista eletrônica Consultor Jurídico. Pelo menos nos princípios que desde seu nascimento orientam sua postura diante dos fatos que tem por obrigação narrar. Ou seja, nas palavras  de um de seus criadores e diretores, Márcio Chaer, que não se cansa de repeti-los para os novos jornalistas que aderem a esse projeto em execução sem fim:

  • Editorialmente, o site se propõe a oferecer informações úteis e confiáveis de forma clara e sintética. Do ângulo operacional, a meta é prestar um serviço. O objetivo da notícia não é encantar ou entreter, mas ser utilitária.
  • Do ponto de vista filosófico, em contraposição aos veículos não especializados, que elegem a acusação como sua razão de existir, a Consultor Jurídico é um espaço para o direito de defesa.
  • O site é principiológico e não casuístico. É preciso repetir incessantemente que o importante neste veículo são os paradigmas, as construções jurídicas, as teses. Por isso dá pouca ou nenhuma importância ao nome da parte ou ao valor da causa.
  • O site não se furta a expor mazelas ou os chamados “escândalos”, mas não é essa sua prioridade. O veículo justifica-se melhor como contraponto ao clima de mata-e-esfola que vigora no país.

A ConJur coloca todo seu empenho para seguir essa mini tábua da lei e deve a ela, com certeza, sua longevidade e seu êxito. Já era assim no dia 28 de julho de 1997 quando publicou a primeira notícia numa internet que ainda era movida a disquete e a conexões discadas, se é que as novas gerações sabem do que se está falando. Os criadores do site, os jornalistas João Ozório de Melo e Márcio Chaer, naquele momento, também não tinham a menor ideia do que era banda larga ou redes sociais, simplesmente porque não existiam tais realidades. Mas já imaginavam que estavam criando algo muito maior do que poderia sugerir aquele modesto primeiro passo.

Assinado pelo jornalista Marcelo Mendonça, aquele que é considerado o primeiro texto publicado pela revista levava o título de "Múltiplas configurações - ICMS toma formas diferentes por setor"  e alinhavava uma série de decisões judiciais sobre a aplicação do imposto estadual. Ainda que de forma enviesada, o objetivo era levar informação útil para o leitor. Assim também eram as cerca de 40 notas publicadas naquele primeiro dia do site e republicadas no dia seguinte. Eram informações sobre questões jurídicas que poderiam auxiliar o leitor no seu dia-a-dia tais como seguro obrigatório de carro, aluguel de imóveis ou a a exigência de se entregar a carteira de identidade na portaria dos prédios. “Retenção de documentos – não compactue com essa ilegalidade”, alertava o mais novo órgão da imprensa mundial naquele dia. Em tom mais solene, advertia em outro texto intitulado “O Judiciário em questão”: “Impõe-se o aperfeiçoamento do sistema de administração da Justiça, de forma a torná-lo processualmente célere, tecnicamente eficiente, socialmente eficaz e politicamente independente”. Se fosse escrito hoje, soaria familiar.

Pagando o preço do pioneirismo, a ConJur demorou algum tempo para ganhar consistência em termos de conteúdo e forma. Seu visual, por exemplo, mudou mais de uma meia dúzia de vezes, se bem que o site nunca tenha se preocupado em lançar moda ou em ser o primeiro em modernidade. Com um público bem definido que busca antes de tudo informação jurídica de qualidade, a maior preocupação acabou sendo sempre o conteúdo. Na competição por leitores e anunciantes, a ConJur sempre teve a consciência de que não haveria de ser a maior no mercado aberto da grande imprensa, mas que tinha de ser a melhor em seu nicho de especialização. Está aí mais uma das opções estratégicas que explicam sua longevidade e seu sucesso.

O modo ConJur de ver o mundo e encarar a Justiça ficou bem evidente em 2004 ao dar em um furo de reportagem do jornalista Claudio Júlio Tognolli a notícia de que o procurador da República Luiz Francisco de Souza assinava como se fosse sua a ação produzida por um terceiro que tinha interesse na causa. A notícia dizia que o solerte procurador ajuizara uma Ação de Improbidade combinada com Ação Civil Pública contra o banqueiro Daniel Dantas e outras 18 pessoas redigida no computador da empresa Nexxy do empresário Luiz Roberto Demarco. “O arquivo em que foi digitada a ação não tem origem na Procuradoria, onde Luiz Francisco trabalha, mas no computador de um empresário que é parte interessada na causa em questão. O autor do arquivo seria o advogado do empresário, Marcelo Ellias”, contava a notícia.

Passados 13 anos daqueles fatos, faz-se necessário apresentar os personagens e as circunstâncias dos acontecimentos. O procurador Luiz Francisco Fernandes de Souza foi uma espécie de Deltan Dallagnol da primeira década do século XXI, só que de esquerda. Também tomado de fervor religioso, empunhou a bandeira do combate à corrupção e infernizou o governo Fernando Henrique Cardoso, durante os oito anos de seus dois mandatos com ações e mais ações de improbidade contra autoridades e funcionários públicos. Sua hiperatividade cessou completamente depois que Lula substituiu FHC no Palácio do planalto. O procurador era filiado ao PT. Daniel Dantas era e é o dono do Banco Opportunity, que teve papel de destaque na privatização das teles e que se tornaria mais tarde o pivô da operação da Polícia Federal conhecida como satiagraha, a mais barulhenta das operações da PF antes da “lava jato”. Luiz Roberto Demarco era um ex-sócio de Daniel Dantas que ao deixar a sociedade de forma litigiosa, passou a combatê-lo com todas as armas de que dispunha.

Uma delas era Luiz Francisco. Acusado de várias outras faltas e irregularidades o procurador não chegou a ser punido. Como deixou claro a ConJur, por trás do seu entusiasmo juvenil em combater a improbidade administrativa ele defendia interesses privados completamente alheios a suas funções de membro do Ministério Público.

O hábito de dar ênfase à tese jurídica, independentemente dos atores envolvidos na causa, permitiu à ConJur, em mais de uma oportunidade, perceber que a suposta defesa de nobres causas, como o combate à corrupção, pode descambar para a demagogia ou até mesmo justificar abusos e ilegalidades. Foi o que aconteceu na operação satiagraha. Desfechada pela Polícia Federal para investigar supostos crimes financeiros do banqueiro Daniel Dantas e de seu Banco Opportunity, a operação não teria prosperado sem a ativa participação e criatividade do Ministério Público e da Justiça Federal. Naquilo que o ministro do Supremo Tribunal Federal definiu como um “consórcio”, a operação foi conduzida pelo delegado da PF, Protógenes Queiroz, pelo procurador regional da República Rodrigo de Grandis e pelo juiz federal Fausto Martin de Sanctis, todos empenhados no mesmo afã punitivo.

O apogeu do trio aconteceu quando De Grandis pediu, de Sanctis autorizou e Protógenes executou a prisão de Dantas. No dia seguinte à prisão, o ministro Gilmar Mendes concedeu Habeas Corpus colocando o o banqueiro em liberdade. No no mesmo dia da soltura, o juiz emitiu nova ordem de prisão . E Gilmar Mendes concede outro HC para libertar o banqueiro. Cinco dias depois a ConJur deu a informação mais importante sobre o caso, até então: publicou o relatório do delegado Protógenes Queiroz sobre a operação.

Daniel Dantas chegou a ser condenado pela suposta tentativa de suborno a um delegado federal, mas foram tantas as irregularidades cometidas que tanto a condenação como a ação penal resultante da operação acabaram anulados pelo Superior Tribunal de Justiça e Pelo Supremo. Como ficou demonstrado na série de reportagens feitas pela ConJur, o principal alvo da operação não era a corrupção, mas sim a mega disputa empresarial pelo controle da operadora de telefonia Brasil Telecom pelo Grupo Opportunity de Dantas, os fundos de investimento do Banco do Brasil, da Petrobrás e da Telebrás, a Telecom Itália e o Citicorp. Envolvido até o pescoço na disputa estava o governo do presidente Lula, já então de olho na Brasil Telecom para fundi-la com a Oi e formar a supertele, uma das sonhadas campeãs nacionais de afirmação internacional.

Na era pré-delação premiada o principal instrumento de investigação da polícia e do Ministério Público era então a quebra de sigilo das comunicações e também o bancário. A operação satiagraha, por exemplo, usou e abusou desses expedientes e chegou ao exagero de convocar arapongas da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin sucessora do sinistro SNI da ditadura, para investigar cidadãos. O paradoxo é que abusos flagrantes na quebra de sigilos estão na raiz das decisões que levaram à anulação da satiagraha bem como da operação castelo de areia, que investigou supostas denúncias de corrupção contra a empreiteira Camargo Corrêa

Ações penais dificilmente atraem a atenção da ConJur além da obrigação do mero registro, já que, geralmente, são pobres de teses jurídicas e ricas de casos concretos. Mesmo assim, durante os oito meses que durou o julgamento da Ação Penal 470, o site esmerou na cobertura do julgamento dos 40 integrantes da, nas palavras do procurador-geral da República, Fernando Antônio de Souza, organização criminal. Desde a abertura de inquérito em agosto de 2005, até o fim do julgamento dos recursos infringentes, em marco de 2014, o processo foi o mais assíduo e escandaloso tema das manchetes da imprensa brasileira.

Denúncias de malfeitorias, debates acalorados no plenário do Supremo, revelações escabrosas e condenações, muitas condenações foram um prato cheio servido diariamente pela mídia aos leitores. Ganhou particular relevo os embates nada gentis entre o relator Joaquim Barbosa e seus colegas, especialmente o revisor de seu voto, Ricardo Lewandowski. A ConJur não se furtou de se servir à mesa das notícias mais saborosas, mas se dedicou a acompanhar as novas teses que estavam sendo desenhadas nos debates. Domínio do fato, provas indiciárias, ato de ofício, embargos infringentes e as novas configurações dos crimes de formação de quadrilha e de lavagem de dinheiro foram o prato de resistência de sua cobertura. E um adequado aquecimento para o que estava por vir: a “lava jato”.

Mais uma vez, na cobertura de um tema jurídico de grande repercussão, a ConJur não se alinhou automaticamente à linha de pensamento dominante. Ainda que solidária ao esforço nacional para enfrentar a corrupção e igualmente estarrecia com sua dimensão, a revista, como é de sua vocação, prestou mais atenção ao devido processo legal da operação. Contrariando a maré de exaltação do juiz federal Sérgio Moro, a ConJur não hesitou em apontar as falhas do juiz, como quando mandou interceptar indevidamente o telefone central do escritório de advocacia onde atua o advogado do ex-presidente Lula. Mesmo não tendo nenhuma restrição pessoal a fazer à chamada República de Curitiba, apontou a falha do Ministério Público ao lançar mão de documentos e informações de seu congênere da Suíça sem respeitar os trâmites diplomáticos e jurídicos exigidos no caso. Da mesma forma que apontou a escalada do punitivismo no sistema de Justiça brasileiro, mostrou as violações flagrantes aos direitos individuais e à Constituição embutidos na proposta mal chamada de "Dez Medidas Anticorrupção" apresentadas ao Congresso pelo Ministério Público Federal.

A ConJur está orgulhosa de ter chegado aos 20 anos. E está orgulhosa de – descontados os erros inevitáveis e pelos quais assume a responsabilidade e pede desculpas – de ter feito a coisa certa. A equipe de mais de 100 jornalistas que ao longo desse tempo trabalhou para levar aos leitores quase 200 mil textos, contou com a orientação e a ajuda de centenas de colaboradores entre ministros, desembargadores, juízes, advogados, procuradores, policiais, empresários, estudantes. Dentre eles, é dever citar os ministros do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, que nos acompanham desde nossas primeiras letras com seu notório saber. Não é difícil perceber que o pensamento jurídico e a visão de mundo deles foram um farol para a ConJur. Sem citar nomes, temos de lembrar ainda dos anunciantes, que pagam a conta, e dos leitores, que são a razão única de sermos o que somos.

*Texto alterado às 15h01 do dia 1º de agosto de 2017 para acréscimo de informações.

Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico.