08/08/2017 Entrevistas históricas
Lenio Streck: "Abandonar as próprias vontades para julgar é o custo da democracia"
*Publicada originalmente no dia 10 de agosto de 2014, a entrevista com o advogado e professor Lenio Luiz Streck foi escolhida como uma das mais importantes dos 20 anos da ConJur.
A força da doutrina parece ser a grande causa de Lenio Streck. O jurista defende que os pensadores do Direito arregacem as mangas e ponham-se a discutir o que acontece na Justiça brasileira, para constranger quem julga errado e incentivar quem acerta, criando uma jurisprudência sólida. O advogado, professor e procurador aposentado parece ser o ponto de encontro entre a academia e o tribunal.
Os primeiros a irem para o "paredão do constrangimento", se houvesse uma lista, seriam aqueles que julgam ou acusam seguindo a própria vontade, abandonando os autos para decidir com base no que sentem. A coerência e a integridade do sistema judicial, como um todo, diz ele, é uma garantia fundamental do cidadão. Abandonar as próprias crenças para julgar de acordo com os códigos é o que Streck chama de “custo da democracia”.
A ideia de que não existem verdades, ou de que tudo é relativo, diz o jurista, não se aplica ao Direito — e nem à realidade. Por isso, se define como anti-relativista, para quem as causas devem ser julgadas seguindo padrões e critérios que possam ser replicados, com base no texto jurídico.
É essa mesma linha de se ater ao Direito que faz com que Lenio Streck seja um grande crítico do chamado ativismo judicial. Ao determinar a função dos três Poderes, a Constituição não deu ao Judiciário a opção de mudar o próprio texto constitucional. Assim, por exemplo, não caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir a favor do casamento homoafetivo, uma vez que a Constituição reconhece a união estável apenas entre um homem e uma mulher. “E não importa as nossas posições com relação ao justo ou injusto sobre essa questão, porque todos os grandes países europeus fizeram isso via Parlamento”, diz.
Streck aponta o próprio ativismo como um dos fatores para que o Brasil tenha uma espécie de “cidadão de segunda classe” — que conta com Ministério Público, Defensoria e magistrados para resolverem seus problemas.
Na sua busca pelas contradições da Justiça, o gaúcho nascido em Agudo ganhou notoriedade. É autor e coautor de 70 livros, entre os quais está Comentários à Constituição do Brasil, que escreveu com o ministro do STF Gilmar Mendes, e o jurista português Joaquim José Gomes Canotiho e o juiz gaúcho Ingo Wolfgang Sarlet.
Colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico desde março de 2012, Streck é presença constante na lista de textos mais lidos — e mais comentados — do site. Ele também é “âncora” do programa Justiça e Literatura, que passa na TV Justiça três vezes por semana.
Em visita à redação da ConJur, deu entrevista e conversou com os jornalistas sobre sua carreira. Aposentado do Ministério Público desde maio deste ano, vai se dedicar à advocacia, focando na produção de pareceres sobre questões constitucionais. Depois de ser apontado em notícias como possível ocupante de uma cadeira no Supremo, Streck se atém a comentar que “é um cargo para o qual ninguém diria não”.
Participaram da entrevista os jornalistas Alessandro Cristo, Márcio Chaer, Marcos de Vasconcellos e Maurício Cardoso.
Leia a entrevista:
ConJur – A interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal à teoria do domínio do fato no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, foi indiretamente criticada pelo próprio Claus Roxin — pai da teoria. Como isso se assenta nas instâncias inferiores? O juiz vai passar a decidir usando a interpretação do Supremo ou vai seguir a sua própria interpretação dessa teoria?
Lenio Streck – Essa é uma parte da perda do país com o caso do mensalão. Cada vez que acontece algo, a doutrina tem que urgentemente dizer: “Aqui estão os acertos e aqui estão os equívocos”. A doutrina não decide, não é normativa, mas influencia. Nós temos 92 programas de pós-graduação no Brasil, que têm de servir para alguma coisa! O governo investe fortunas para pessoas irem estudar no exterior. O Brasil tem o sistema de pós-graduação mais organizado do mundo, porque ele é ranqueado. Esse sistema tem que produzir doutrina! O estudioso que faz uma tese ou uma dissertação tem que servir para que o juiz e o ministro julguem melhor.
ConJur – Nosso sistema de educação parece sempre presente nas suas colunas, com a ideia do combate ao Direito raso, à simplificação do Direito. Mas como se combate a simplificação do Direito ao mesmo tempo em que 115 mil estudantes, por ano, fazem a prova da OAB — que chega a reprovar mais de 90% desses estudantes?
Lenio Streck – Com essa massa é impossível. O que se pode fazer é formar nichos de qualidade. Isso é como classes sociais. Talvez o grande problema do Direito brasileiro, da sua crise, seja uma espécie de classe média do conhecimento, que não chega a ser proletarizada, naquele sentido dos direitos simplificados, mas também não é de uma elite mais "intelectual". Classe média no sentido de atravancar, porque ela é conservadora, está dentro do senso comum, é avessa a sofisticações, usa a frase "isso sempre é assim", ou "juiz decide assim mesmo". Ela não deixa aqueles que trabalham de forma mais sofisticada influenciarem o sistema. Então eles mantêm o domínio da produção dogmática. E essa mesma dogmática foi uma perda do mensalão, porque confiou em um certo senso comum. Pessoas repetem que “o juiz decide conforme sua vontade”, inclusive nos tribunais, e ninguém para pra pensar no que é essa vontade. Numa democracia, se o meu direito depende da vontade de alguém, pra que eu devo estudar Direito, então? Se eu tiver que saber quais são os gostos pessoais de quem julga para poder influencia-lo, o que eu menos preciso fazer é estudar. Direito não é um agir estratégico. O advogado necessariamente tem que fazer isso [agir estrategicamente], mas o advogado é um dos atores. Quem decide não pode colocar na sua decisão os seus gostos as suas questões. A subjetividade do juiz tem que estar controlada pela intersubjetividade.
ConJur – Mas os juízes sempre vão poder decidir de maneira diferente?
Lenio Streck – Podem sim. O [Ronald] Dworkin diz que isso é um romance em cadeia. É como se todos nós escrevêssemos um romance, cada um escrevendo um capítulo. Com certeza faremos capítulos diferentes, mas será a mesma história. É a coerência e a integridade de um sistema. Por isso é que se o Supremo tivesse decidido em exigir o cumprimento de 1/6 da pena para que presos no regime semiaberto [no caso do mensalão] pudessem trabalhar, ele teria escrito outro capítulo, diferente, e, no dia seguinte, todos os demais [julgadores] teriam que seguir o romance com esse capítulo já posto. Isso é a responsabilidade política. Direito não é um conjunto de casos isolados, decisões ad hoc etc. A questão é saber como decidir a partir de uma criteriologia. Eu tenho direito fundamental a que meu caso seja julgado com coerência e integridade.
ConJur – As pessoas dizem que o processo garante o equilíbrio. O processo é mais importante que a causa?
Lenio Streck – O processo acabou ficando com um fim em si mesmo. Com isso acabamos deixando de lado aquilo que se pode chamar da substância. No meu livro Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica tem um capítulo que fala em substancialismo e procedimentalismo; são os dois contrapontos. Quando a gente está falando em processo, ele tem que garantir que eu não seja surpreendido, que não possam usar presunções contra mim e que as partes sejam ouvidas. O grande problema no Brasil nos últimos anos é aquilo que chamamos de instrumentalismo, isto é o excesso de protagonismo judicial, do juiz que pode fazer prova, mexer no procedimento e decidir com livre convencimento. Precisamos tirar isso no novo Código de Processo Civil. O processo é justamente para evitar o protagonismo.
ConJur – Como evitar a aleatoriedade do julgamento? Como no caso de um juiz que foi assaltado e, no dia seguinte, vai julgar o caso de um assalto...
Lenio Streck – São contingências. Sempre pode acontecer isso, mas não deve. Os juízes têm que entender o papel que exercem. Ele pode odiar algo, mas tem uma responsabilidade como agente político do Estado. Se a comunidade jurídica — que podemos chamar de comunidade de princípios — tem uma posição, uma doutrina adequada, que diz que para manter alguém preso precisa de alguns requisitos, e o juiz está julgando alguém que ele odeia, mas cujo caso cumpre esses requisitos, pode se declarar impedido e cair fora, ou tem que segurar as vontades pessoais e soltar o réu. É o custo da democracia.
ConJur – Mas é possível uma sanção a esse juiz que não segue a doutrina?
Lenio Streck – Pela independência da magistratura, me parece muito difícil. Só se corrige isso com um forte constrangimento doutrinário. Decidir não é uma questão de gosto, vontade ou subjetividade. Decidir é um ato de responsabilidade política. Essa história de que gosto não se discute, gosto não se discute no plano do gosto, agora isso não significa que eu não tenha uma resposta constitucional e eu não possa dizer que essa resposta é melhor que a outra. Se eu não conseguir fazer isso é porque eu fracassei. Se o Direito não conseguir dizer que uma decisão é correta e a outra é incorreta no plano das práticas sociais e jurídicas e da doutrina etc. é porque eu fracassei. Ou seja, eu sou anti-relativista. Uma das questões fundamentais da democracia é ser anti-relativista. Essa história de que cada um tem a sua opinião funciona para o rádio, para uma discussão. Você é obrigado a ouvir a minha opinião; posso ser obrigado a ouvir, mas se sua opinião é furada não tem sentido. O Direito não é relativista, a realidade não é relativista. A pessoa que acha que tudo é relativo caiu numa contradição, porque isso que ela disse também é. O sujeito que diz que não há verdades, ótimo, inclusive o que ele disse: não há verdades, inclusive que não há verdades. Ele caiu num paradoxo. Então o direito é uma ciência aplicativa pela qual eu posso demonstrar aquilo que as pessoas acham que está no mero plano da subjetividade. Esse é o grande avanço que nós temos que dar.
ConJur – Ou seja, a autonomia jurisdicional do juiz tem limites.
Lenio Streck – Tem limites evidentemente, como a sua autonomia de trocar o nome das coisas. Se você chamar um copo d'água de ônibus, quando você tiver sede, pode ser atropelado. A sua autonomia termina na sua esquizofrenia. Eu fui à Bahia fazer uma conferência – eu conto seguidamente isso – e um menino fez uma conferência lá, e ele tinha o “kit carreira jurídica”, vestido de terno Hugo Boss, andando de Audi A4, um jovem, que tinha acabado de fazer o mestrado. Ele dizia "não há verdades" e fez um discurso apoplético — as meninas e meninos adoraram aquilo. Quando me deram a palavra, eu disse: “Não acredite em nada que esse menino falou, acredite no mais velho aqui. Entender filosofia é uma coisa importante”. Peguei uma garrafa d'água e disse: “Isso aqui não é uma garrafa d'água só porque eu quero que ela seja. E assim como você tem sua autonomia no cotidiano e não quer ser chamado esquizofrênico por trocar o nome das coisas, também no plano das práticas jurídicas, nós temos uma dogmática, nós temos conceitos. Eu não posso transformar homicídio em estelionato. O texto jurídico é muito importante. Uma interpretação tem que ter algo, você não pode inventar as coisas. Com isso o sujeito já tem no mínimo a garantia que existe uma lei”.
ConJur – Falando em texto da lei, o nosso texto constitucional sofre críticas por ser enorme. Mas há quem diga também que reduzir ele, enxugar a Constituição só serviria para retirar direitos. Qual sua opinião?
Lenio Streck – Tem gente que diz que a Constituição mais enxuta do mundo é a que mais dura, que é a dos Estados Unidos: 7 artigos, 26 emendas. Quem disse que ela é mais curta? O sistema é da common law e cada decisão da Suprema Corte americana é um precedente e um precedente é como se fosse uma nova lei, portanto ela é maior que a nossa. É uma ilusão achar que a nossa Constituição é tão grande assim, tão extensa.
ConJur – Mas o senhor acredita que haja um outro país no mundo onde o Judiciário tenha tanta interferência na vida do país?
Lenio Streck – Porque se deu isso no Brasil? Porque temos um país em modernidade tardia, com problemas sociais enormes e aí chega em 1988 e faz uma Constituição, que coloca em seu texto promessas da modernidade. O paraíso na Constituição e o inferno na realidade. A Constituição diz que o Brasil é uma República e visa erradicar a pobreza. O que tem que se fazer então? Tem que fazer políticas públicas para isso. O Legislativo e o Executivo não fizeram, por causa do presidencialismo de coalizão. O Legislativo não foi fazendo as leis, o Executivo foi tendo que atender demandas a todo tempo, o que fez com que as pessoas corressem ao Judiciário. E o judiciário no Brasil não soube – e aí a doutrina de novo falhou –estabelecer a diferença entre judicialização e ativismo. Essas são coisas diferentes e é inexorável que haja judicialização em qualquer país no mundo. Judicialização é um problema de competência e incompetência: um poder é incompetente, a Constituição diz X, o Poder não faz, o Judiciário manda fazer. Ativismo é quando o Judiciário se substitui aos poderes que são do legislador e, por exemplo, acaba interferindo nas esferas dos demais Poderes e fazendo com que se fragmente o sistema. A judicialização acontece, em qualquer país do mundo e o ativismo acaba sendo ruim para a democracia. Acabamos criando o judiciário muito forte, como uma espécie de grande pai da nação. O ativismo é vulgata da judicialização.
ConJur – No caso do casamento homoafetivo, por exemplo...
Lenio Streck – O tribunal foi ativista. E não importa as nossas posições com relação ao justo ou injusto sobre essa questão, porque todos os grandes países europeus fizeram via parlamento, e aqui no Brasil foi via Judiciário.
ConJur – O que significa um país de 200 milhões de habitantes ter 100 milhões de processos.
Lenio Streck – Não todos processos strictu sensu. Nosso país tem Embargos Declaratórios, Agravos, e muitos deles são usados para fazer estatística e para cumprir metas do CNJ. Tiremos dos números também os processos de contravenções penais — a contravenção penal é uma lei que já não deveria existir, porque é inconstitucional. É o caso da bagatela. Nós não temos uma doutrina sobre bagatela e continuamos processando pessoas por furtar sabonete. Tem também os Embargos Declaratórios, que não deveriam existir. Um país não pode sobreviver com um sistema jurídico que diz que o juiz pode produzir uma sentença omissa, contraditória ou obscura. A decisão deveria ser nula, porque ele tem que fundamentar a miúde, não embargar. Isso diz que o agente político do Estado está autorizado a fazer obras mal feitas para serem embargadas e depois embargadas dos embargos, dos embargos e do agravo e do agravo... Precisamos tirar tudo isso desses 100 milhões de processos. Será no mínimo a metade. O Brasil precisa parar de se preocupar com efetividades quantitativas. As efetividades tem que ser qualitativas.
ConJur – O CNJ tem mirado bastante na quantidade. Por que isso é ruim?
Lenio Streck – Essas metas fazem exatamente que se exacerbe essa questão de estatísticas. E, no fundo, parece que o Judiciário ideal seria o judiciário sem processos. Aquela metáfora do queijo suíço, na qual quanto mais furos tiver, melhor é o queijo. Assim, mo queijo ideal seria o “não-queijo”, pois seria só os furos.
ConJur – Mas um processo demorar dez anos é um problema.
Lenio Streck – Sim! Mas não precisa ser resolvido em dois meses. O que está escrito é que o processo deve ter duração razoável. Razoável é dez anos, ou um ano? Alguém tem um aparelho chamado “razoalômetro”? Uma decisão bem fundamentada tem menos possibilidade de sofrer embargos, agravos etc. Processos feitos para cumprir estatísticas acabam gerando um problema de fragmentação.
ConJur – Na sua visão, o Brasil precisa aumentar a máquina do Judiciário?
Lenio Streck – Penso que os tribunais superiores podem ter mais membros. Não há nenhum problema de ter um STJ com 66 ou 99 ministros. O José Rogério Tucci escreveu que temos que combater a jurisprudência defensiva. Fazemos isso aumentando as possibilidades de examinar a substância. Isso seria possível aumentando o número de ministros, ou então vamos transformar os ministros em gestores de busca de defeitos nos processos para que eles não sejam conhecidos. A decisão de primeiro grau bem fundamentada nos moldes de uma criteriologia faria com que a possibilidade de recursos seria menor.
ConJur – Então o senhor defende que haja uma redução de instâncias?
Lenio Streck – Eu defendo um novo proceder dos juízes. A decisão do primeiro grau tem que ter mais valor. O professor Ovídio Baptista, de saudosa memória, sempre dizia que os juízes de primeiro grau não podem ser simplesmente um rito de passagem, um pedágio a ser pago. Ele dizia uma frase: deem-me cinco dias e uma biblioteca de cinco mil volumes que eu faço uma decisão que ninguém modifica.
ConJur – O senhor concorda que a grande dificuldade de condenar de 30 anos atrás virou, atualmente, uma grande dificuldade em absolver?
Lenio Streck – Penso que a facilidade em condenar vem da insegurança, do imaginário social. Devemos ter muito claro que o Estado falha ao dar segurança. Eu sou absolutamente a favor de todas as liberdades, mas não se pode sair por aí dizendo que é proibido proibir. Cria-se um imaginário de que o bom bandido é o bandido morto, que o bom réu é o réu condenado. Claro que nós estamos ideologizando essas discussões, temos um Código Penal que protege muito mais a propriedade que a vida, que continua achando que sonegar tributos é menos grave do que furtar. Um sujeito que furta e devolve a res furtiva, tem o desconto de pena e olhe lá; agora, se ele sonega tributos e paga depois, ele tem isenção de pena. Mas por que isso? O que é mais grave: furtar ou sonegar tributos? Em 1990, um ano e dois meses depois da Constituição, eu escrevi um artigo recomendando aplicar a Lei de Sonegação de Tributos para os furtos — e, posteriormente, fui o primeiro a aplicar isso, quando eu fui promovido a procurador.
ConJur – O que sobrou da Justiça Alternativa no Sul?
Lenio Streck – Sobrou muito pouco, porque ela perdeu seu tempo. Antes da Constituição, tinha um Estado mau, uma legislação autoritária, e o que restava para um jurista era nas brechas da institucionalidade tentar convencer o juiz, e aí eu preciso do acionalismo. Mas no momento em que todas as reivindicações são colocadas na Constituição, ele muda o foco. Aí não precisa-se do acionalista, é preciso que se cumpra a Constituição. Então o Direito Alternativo, ou o realismo jurídico – porque o Direito Alternativo é uma espécie de braço do velho realismo jurídico escandinavo ou norte americano — é uma posição política sobre o Direito, uma oposição política em relação a um stablishment ruim, autoritário.
ConJur – Nós temos uma forte inserção do Executivo na escolha dos julgadores de tribunais, seja nos estados pelos governadores, seja no âmbito federal pelo presidente. A maior parte das leis importantes que são aprovadas, são de iniciativa do Executivo. Ou seja, nós ainda temos um Executivo que faz as leis e faz os juízes. Isso acabará um dia?
Lenio Streck – O presidente da República tem “50% mais um” no presidencialismo, desde 1891. Eu não tiraria o poder de nomear do presidente da República, porque ele tem legitimidade. Nós votamos bem ou mal e, se eu não gostar, eu troco. Temos que saber que quando o Legislativo não faz uma lei sobre determinada coisa, não basta falar mal do Legislativo, mas podemos trocar o legislador. O que não pode é achar que o Judiciário pode substituir o Legislativo. Temos que criar uma criteriologia para nomeação dos ministros do Supremo e das cortes superiores.
ConJur – Muitos advogados reclamam da postura inflexível do Ministério Público na hora de negociar um TAC, por exemplo, ou na hora de discutir alguma coisa com o advogado, não necessariamente no Tribunal. O Ministério Público é realmente assim inflexível ou ele tem as suas razões para se manter distante dos advogados?
Lenio Streck – Ministério Público, como Judiciário, não pode ser um Ministério Público ativista simplesmente. As mesmas restrições que opõe o problema da diferença entre judicialização e ativismo vai para o Ministério Público. O Brasil é um país complexo, o que acaba fazendo com que todo mundo recorra à Defensoria e ao Ministério Público etc. Estamos correndo o risco de criar cidadãos de segundo plano, ou de terceirizar a cidadania. As pessoas já não lutam pelos seus direitos, eles têm o pai promotor, o pai defensor, o pai juiz e vão correndo para eles pedir ajuda. Os deputados, em vez de fazer CPI's e investigarem os crimes, levam representação ao Procurador Geral, e o Ministério Público e o Judiciário vão crescendo. O MP tem que se comportar como um magistrado. Ele não escolhe simplesmente denunciar alguém. Ele decide denunciar alguém. Isso é um ato de responsabilidade política. O promotor é promotor de Justiça. Não é o promotor da lei, como se a lei fosse plena e potenciária. Eu, em até 80% dos casos, me posicionava a favor dos interesses do réu.
ConJur – E a obrigatoriedade da ação penal?
Lenio Streck – Isso é uma ficção ultrapassada. Não tem sentido em uma Constituição que diz que o Ministério Público é o dominus lite — e o próprio código diz que se o sujeito agiu sob o pálio da lei ele não responde por crime — por que eu teria obrigatoriedade de levar essa questão? O Ministério Público tem uma parcela de soberania. Minha postura, durante 28 anos, foi de colocar o Ministério Público como uma magistratura de pé; assim como o juiz é o magistrado sentado. Para mim, fazer uma denúncia é como uma sentença; ela começa a decidir a vida da pessoa.
ConJur – Mas promotor ou procurador pode ser responsabilizado por um erro nessa acusação, ou por manter uma acusação que ele saiba que é falsa?
Lenio Streck – É o mesmo caso de um erro crasso de um juiz. É um problema que o sistema brasileiro não resolveu ainda. Nós temos que amadurecer ao ponto de nós podermos responsabilizar tanto os juízes como os promotores.
ConJur – O Ministério Público tem a isenção necessária para investigar como ele pleiteia?
Lenio Streck – O problema não é ele ter isenção ou não. O Ministério Público tem poder de determinar, requisitar da polícia. O grande problema é que no Brasil, não conseguimos fazer um controle externo da atividade policial, isso é uma ficção, lamentavelmente, e as brigas corporativas não conseguem resolver um problema que ajudaria toda a população. Devia-se terminar com certos corporativismos e, de fato, chegar a um meio denominador comum. O Ministério Público não é juiz, mas o delegado também não é promotor, e defensor não é promotor. No Brasil todo mundo quer ser a mesma coisa! Chegamos a um ponto em que o Estado tem um promotor bem pago para acusar alguém, e a vítima pede para se habilitar como assistente de acusação via Defensoria Pública. Que Estado incompetente é esse que tem alguém que está pago para acusar e o próprio Estado confessa que esse cara não tem condições de levar isso adiante? A pergunta é: Por que eu tenho que transferir recursos da população em geral para “dar felicidade” para uma vítima que quer se habilitar como assistente de acusação se ela já tem o promotor pago exatamente para isso? E isso está acontecendo. O dia em que o Ministério Público necessitar de um assistente de acusação pago pelo próprio Estado, ele pode fechar as portas.Imagine o seguinte caso: no Tribunal do Júri, o Ministério Público, que é o dono da ação penal, pede absolvição em plenário. Já o Defensor Público, como assistente de acusação, pede a condenação. O que o jurado faz? O jurado se suicida ou sai correndo!
ConJur – Nos casos em que o MP e a Defensoria se enfrentam, não é paradoxal o Estado atacar e defender?
Lenio Streck – A Defensoria é a condição de possibilidade em um país de modernidade tardia para dar um mínimo de democracia e Justiça à essa população imensa, que, historicamente, ficou de fora do butim social.
ConJur – Uma defensora pública em São Paulo conseguiu que uma aluna que ficou em recuperação tivesse a nota alterada, para passar de ano...
Lenio Streck – Isso é um bom mau exemplo de ativismo judicial. Judiciário não corrige nota de aluno incompetente. E nem de aluno competente se estiver no lado contrário. E a resposta é muito simples: por que eu vou transferir recursos de outros lugares da sociedade para dar felicidade para aquele aluno? Esse é o problema de criar um cidadão de segunda classe. É duro fazer democracia. Hoje, a autonomia do Direito não pode ficar a reboque, por exemplo, de idiossincrasias pessoais. Um aluno que quer fazer curso de medicina e não gosta de sangue ou não quer dissecar os animais, não pode conseguir no Judiciário o direito de cursar uma disciplina à parte. Por uma razão simples: não há direito fundamental a cursar Medicina. Faça outro curso. A primeira pergunta que o juiz e o promotor têm que fazer é: “Eu posso universalizar essa conduta?” A própria questão de uma pessoa que pede remédio experimental de R$ 200 mil. É conduta universalizável? Se não é, acabou.
ConJur – Mas o doente que pede remédio de R$ 200 mil não é o desigual que tem que ser tratado de forma desigual?
Lenio Streck – Esse é uma dilema moral. O juiz não responde dilemas morais do sistema. De algum modo, aquele paciente chegou ali e não vai resolver com o juiz essa questão. Se o sistema fizer depender do juiz, nós temos um sistema de dilemas morais, não mais uma democracia. O Direito não vai responder dilemas morais.
ConJur – No julgamento dos planos econômicos, que opõe poupadores e bancos, o que se coloca é que o Supremo vai decidir entre um direito e a possibilidade de cumprir esse direito...
Lenio Streck – Nesse debate, eu perguntaria: “A viúva terá que pagar alguma parte caso os poupadores vençam?” Se sim, por que eu tenho que transferir recursos das outras pessoas que não tinham poupança para dar felicidade para aquelas que tinham?
ConJur – Em que o Direito Internacional pode ajudar ou atrapalhar no Direito nacional?
Lenio Streck – Em algumas questões que talvez o Direito brasileiro não trabalhe adequadamente... O Direito Internacional que trata dos direitos humanos tem validade. Como os tratados internacionais que acabam vetando, por exemplo, a prisão por dívida. Isso é importante. Mas não acho que os tribunais internacionais são melhores ou podem produzir decisões melhores que o Brasil. Não é uma instância acima do poder nacional.
ConJur – Como o senhor avalia a influência do noticiário nas ações do Ministério Público e nas decisões judiciais?
Lenio Streck – A mídia não pode pautar o judiciário e o Ministério Público. Um direito que é decidido por princípios tem que ficar fora das questões construídas pelo imaginário social. Quem disse que o imaginário social está certo? A Constituição é um remédio contra as maiorias. E se a maioria estiver na rua pedindo pena de morte, o Judiciário vai decidir contra a Constituição? Não. Esse é um bom exemplo.
ConJur – E tem o inverso disso, o quanto o Ministério Público e a Polícia pautam a imprensa com acusações...
Lenio Streck – Eu fico impressionado como que em determinadas operações eles vão sangrando os acusados um a um. Vazando informações a conta-gotas. Esses vazamentos são ilegais. Ou vaza todos ou não vaza nenhum. Ou o processo é público ou o processo não é público. Tem que punir quem faz isso com muito rigor. O comportamento no varejo de alguns membros do Ministério Público que fazem isso não deve ser transportado para o atacado. É como o juiz que vai dar uma sentença e chama a imprensa.
ConJur – O senhor critica muito a fixação por números que o CNJ parece ter. A função do Conselho Nacional do Ministério Público tem sido cumprida?
Lenio Streck – O CNMP segue na trilha do CNJ. Tem acertos e erros. Sempre que colocam metas, acabam comprometendo a substância.