10/08/2017 Ano XX
Lógica contrária à da “voz das ruas” faz bem à democracia e ao trabalho das autoridades
A percepção da imprensa e do público sobre o protagonismo do Judiciário parece coincidir com o início das transmissões, ao vivo, dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal pela TV Justiça, a partir de 2002. O julgamento da Ação Penal 470, o processo do “mensalão”, potencializou esse interesse. Mas a turba e a mídia queriam prisões, não julgamentos. E alguns ministros vergaram. Entre 2007, quando a denúncia foi aceita, e 2013, quando o acórdão foi publicado, a corte foi palco de comportamentos antes incomuns. “Saia às ruas”, bradou um deles ao colega, cobrando posição mais populista da corte. Ao mesmo tempo, os votos iam se tornando cada vez mais longos, à luz da ribalta.
Aos poucos, os brasileiros se habituaram a termos como “embargos infringentes” ou “pedido de vista”, também aprenderam a diferença entre relator e revisor. E conforme a pauta do STF trazia temas com repercussão política, a mídia reservava mais espaço na programação. Notícias jurídicas deixavam de ser exclusividade de um público iniciado. Hoje é possível acompanhar sessões de julgamento quase na íntegra pelos telejornais. Ao mesmo tempo, os operadores do Direito foram ampliando sua habilidade para lidar com a imprensa e se tornaram fontes de jornalistas.
Mas antes dessa “corrida do ouro”, alguns veículos já eram vanguardistas. Os jornais Valor Econômico, Gazeta Mercantil e DCI, por exemplo, já tinham cadernos dedicados à Justiça, numa cobertura com caráter utilitário, de “serviço” para advogados e empresas. Um site em particular, porém, enxergou essa bola quicando na área muito tempo antes. Em 1997, a revista eletrônica Consultor Jurídico — a ConJur — publicava sua primeira notícia. Com o tempo, se tornou a principal referência nacional do setor.
Na equipe do veículo entre 2008 e 2014, atendi diversos telefonemas de colegas jornalistas que pediam encarecidamente o telefone de algum advogado ou magistrado. As ligações vinham de grandes emissoras de TV e dos maiores jornais do país. Muitas reportagens da ConJur viraram notícias na grande imprensa, comentários em editoriais ou reproduções na íntegra. Cheguei a ouvir de uma editora que sua primeira fonte sobre o que de importante aconteceu no dia era o antigo “Noticiário Jurídico”, clipping matinal da ConJur, que, no ano passado, virou um produto “vendido separadamente”, o Boletim Jurídico da ConJur.
Em 2007, a revista eletrônica abria outra picada. Colocava nas bancas seu primeiro Anuário da Justiça, um ousado registro de como pensava cada um dos 91 ministros das cortes máximas do país, feito com entrevistas pessoais no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar. O resultado foi tão encorajador que, um ano depois, o modelo era reproduzido na maior corte do mundo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com seus 360 desembargadores e outra centena de julgadores de segundo grau.
Foi quando peguei carona nessa história. Depois de uma grata experiência na cobertura jurídica pelo Valor Econômico, aceitei o desafio de ajudar a dar à luz o primeiro Anuário da Justiça - São Paulo, juntamente com a equipe de reportagem composta por Maurício Cardoso, Aline Pinheiro, Rodrigo Haidar, Fernando Porfírio, Lilian Matsuura, Vinicius Furuie, Larissa Garcia, Priscyla Costa, Thabata Mondoni, Gláucia Milício, Anderson Passos e Daniel Roncaglia, com Márcio Chaer como publisher. Lembro-me que as entrevistas com os desembargadores eram difíceis, algumas improdutivas. A resistência e o desconforto dos magistrados em falar com um jornalista eram uma barreira. Alguns traziam a escolta de um funcionário diante do gravador. Outros se limitavam a respostas lacônicas. Muitos sequer nos atendiam. E havia também os que desconfiavam. Nossa equipe assistiu um deles bradar pelos corredores do Palácio da Justiça, ao ser abordado: “Vocês querem informações minhas para entregar ao PCC!” A própria direção da corte desestimulava os magistrados a falar e, por mais de uma vez, funcionários da cúpula interromperam entrevistas em andamento. Eram tempos de transição e aprendizado mútuo.
Mas havia os que enxergavam a transparência do Judiciário como algo saudável. Julgadores viram na imprensa especializada o canal para apontar ao Executivo e às empresas as feridas sociais e econômicas que geravam os milhões de processos. Outros alfinetavam a má qualidade das leis e a incompetência dos seus autores. E alguns aproveitavam as entrevistas para divulgar um trabalho paralelo, como um livro. Para nós, tudo ajudava.
Hoje, o Anuário é uma realidade não só em São Paulo e Brasília, mas também no Rio de Janeiro, tendo passado ainda por Minas Gerais e Rio Grande do Sul, além das edições da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho e da Advocacia Pública Federal.
Em abordagens para os Anuários ou para o site, nem todos os juízes estavam no mesmo passo. Havia os que preferiam a intimidação. Aconteceu em uma das minhas visitas ao fórum Ruy Barbosa, da Justiça do Trabalho paulista. Identifiquei-me como jornalista no cartório de uma das varas e pedi para ver um processo público, sem sigilo. De volta à redação e com fotos dos autos, recebi o telefonema da juíza responsável pelo caso, pedindo uma conversa pessoal. Ao comparecer em seu gabinete, fui surpreendido com um “você tem que me pedir para tirar fotos do processo”. “Oras, Excelência, o processo é público”, respondi. “Mas não para repórteres”, ela rebateu. Com paciência e um pouquinho de jogo de cintura, convenci-a de que o argumento não tinha fundamento, já que a imprensa é apenas o meio — e o manual diz que “a informação não é do jornalista, é do leitor”. Ela mudou a tática: “se você publicar qualquer coisa, deixo o processo e a vara”, advertiu. A notícia se concretizou. A ameaça, não.
Nesse processo de abertura do Judiciário, a ConJur acompanhou de perto as boas iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, criado em 2005 com a vocação de planejar e organizar a casa. Noticiou os primeiros mutirões de julgamento e de ressocialização de presos, e foi a única a fazer cobertura dedicada ao relatório “Justiça em Números”, que trouxe, pela primeira vez, uma estatística sólida sobre a efetividade do trabalho e dos recursos aplicados no Judiciário. Dados sedimentados ano a ano tornaram o relatório uma radiografia, que identificou gargalos.
Em 2010, a Consultor Jurídico recebia o Prêmio Nacional de Estatísticas Judiciárias, após um trabalho de pesquisa, tabulação e análise dos dados consolidados que rendeu nove reportagens sobre cada ramo da Justiça. Uma delas é bastante representativa: “Congestionamento na Justiça recuou nos últimos anos”. O texto informava que, nos três anos anteriores, as Justiças Estadual e Federal registraram queda no número de processos parados, por conta do aumento da produtividade dos juízes. Porém, com o crescimento na quantidade de casos novos por ano, o fim da espera por soluções ficava mais distante. É o que ainda acontece hoje.
O CNJ também foi concebido como órgão fiscalizador dos magistrados. E flagrou um episódio que revelou a vulnerabilidade do sistema. Para se vingar da ex-mulher por conta do divórcio, um homem resolveu usar a Justiça como playground, e processar, com gratuidade concedida pelo Judiciário, a família do sogro, seus advogados, delegados de Polícia, juízes, desembargadores e quem mais se colocasse em seu caminho — o que incluiu a ConJur. Com isso, comprometeu a todos os desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul que, um a um, se deram por impedidos após virarem alvos de ações do mesmo processador serial.
O caso chegou ao CNJ depois que uma juíza foi denunciada por favorecer o “empresário” — como a ConJur preferiu chamá-lo. Entre as vantagens estavam liminares autorizando busca e apreensão de documentos em São Paulo, nas empresas do sogro, sem o conhecimento da Justiça local. Além de mandar a ex-mulher pagar pensão de R$ 100 mil mensais. A juíza acabou aposentada compulsoriamente. O processador em série chegou a ser preso, mas foi solto. E os ajuizamentos continuaram, com estratégias rasteiras. Uma delas era se passar pelo réu e informar um endereço errado, para depois acusá-lo de “foragido”. Outra era juntar milhares de páginas aos processos, apenas para que a análise demorasse. Usar cópias da mesma guia de custas em diferentes ajuizamentos também estava no arsenal.
Entre os alvos das ações estavam jornalistas e veículos que contaram a história. A revista Marie Claire foi um exemplo. Após publicar a história de como a ex-mulher do “empresário” foi vítima de tortura psicológica, uma decisão determinou a remoção do conteúdo do ar — em vez de reconhecer a coragem da agredida em revelar publicamente os abusos. Também processada, a ConJur não se intimidou. A sequência de 54 textos publicados entre 2009 e 2017 é um verdadeiro almanaque de malandragens a que juízes, promotores e advogados devem estar atentos. Um a um, os processos foram caindo, graças ao trabalho do advogado Alexandre Fidalgo, especialista em Direito de Imprensa que nos garantia o sossego para exercer nossa obrigação.
O Direito exige atenção aos detalhes. Tanto de quem o manuseia quanto de quem escreve sobre ele. Saber, por exemplo, que um Mandado de Segurança deve trazer consigo provas pré-constituídas para ter efeitos faz toda a diferença. E foi ao observar isso que publicamos, em 2010, o texto “STJ limita Mandado de Segurança para compensação”, expondo um conflito que poderia acabar com o uso do Mandado de Segurança pelos tributaristas nos pedidos de compensação fiscal.
A pauta nasceu de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça — que ainda se acostumava ao recente sistema dos recursos repetitivos. Em julgamento da 1ª Turma, o ministro Luiz Fux, alguns meses antes de ser escolhido para uma vaga no Supremo Tribunal Federal, proferiu voto que impedia o uso, pelas empresas, de Mandados de Segurança requerendo a compensação de débitos com créditos tributários acumulados antes do ajuizamento da ação. Em miúdos: só valeria abater dívidas com valores pagos a mais se o “a mais” fosse posterior ao pedido feito à Justiça. Porém, uma decisão anterior da 1ª Seção da mesma corte dizia ser obrigatório que o Mandado de Segurança pedindo compensação fosse acompanhado de provas do crédito que cobriria os débitos. Ou seja, ambas as decisões não eram rigorosamente contraditórias, mas, na prática, impediam que uma empresa recorresse à Justiça de forma urgente quando o Fisco se negasse a cruzar débitos com créditos, embora as normas permitam isso. O entendimento manteria incontáveis cobranças da Receita Federal, ao mesmo tempo em que as empresas esperavam ressarcimentos fiscais.
A apuração me permitiu o contato com o autor do voto, o ministro Luiz Fux, que não só me atendeu gentilmente num aeroporto quanto também explicou seus fundamentos. Mas reconheceu que havia margem para conflito. Em nota enviada à redação, reiterou que, “em caso de dúvida, a tese esposada no recurso repetitivo é sempre prevalente”, admitindo que apenas um dos caminhos era possível, e que sua decisão deveria ceder em relação à anterior. A atitude prestigiou a cobertura atenta da ConJur.
Os temas tributários, aliás, sempre foram minha preferência. E a ConJur me deu o espaço e a liberdade necessários para reportar o assunto com independência. Ao todo, foram mais de 250 textos a respeito. Entre os meus preferidos estão “STJ vota tese não levantada em recurso repetitivo”, sobre a interrupção da prescrição de cobranças fiscais; “PGFN consegue reverter decisão transitada em julgado”, a respeito da guinada da Justiça em relação à cobrança da Cofins dos escritórios de advocacia; e “Tributação sobre ações da bolsa será julgada no Carf”, que adiantou a intenção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em julgar, pela primeira vez, a tributação sobre a desmutualização dos títulos das bolsas de valores.
Ainda gosto de contar sobre as reportagens sobre o local da cobrança do ISS no leasing e a sequência de notícias sobre uma procuradora da Fazenda admitida como assessora de desembargador que relatava ação de R$ 40 bilhões proposta por ela contra a Vale. O CNJ julgou o caso, mas não viu impedimento. Mas a procuradora acabou afastada do tribunal.
Como jornalista, o Anuário e a ConJur me deram oportunidades únicas de entrevistar, cara a cara, mentes privilegiadas e figuras polêmicas. Marcaram as exclusivas com os presidentes do STF Gilmar Mendes e Cezar Peluso; a ex-presidente da Suprema Corte da Venezuela Cecilia Sosa Gómez; os ministros do Supremo e do STJ Dias Toffoli, Luiz Fux, Ari Pargendler, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Herman Benjamin e Castro Meira; os do TST Ives Gandra Martins Filho, Maurício Godinho Delgado e Pedro Paulo Manus (aqui e aqui); a presidente do STM Maria Elizabeth Rocha; o advogado-geral da União Luís Inácio Adams; entre tantos outros. Ao todo, nos seis anos de revista, contribuí com 888 textos exclusivos, e mais um sem número de escritos como redator, repórter, revisor ou editor.
Pioneira em quase tudo o que se propôs a fazer, a ConJur é um farol. Em que outro lugar se mostra que nem tudo o que a acusação diz é presumidamente verdade, nem que o que diz a defesa é presumidamente mentira? A lógica contrária à da “voz das ruas” faz bem à democracia e ao trabalho das autoridades. Nas notícias diárias do site, é fácil entender por que um juiz de primeiro grau pode ter tanta responsabilidade e poder quanto um chefe de governo. E por que o operador do Direito pode ser um termômetro da economia, uma das fontes mais precisas sobre o grau de maturidade da sociedade e uma trincheira contra as arbitrariedades.